1. Introdução
A locação de imóveis possui uma densidade social imensurável, pois, como bem aponta Fábio Ulhoa Coelho, “imóveis são tradicionalmente vistos pelos brasileiros como uma alternativa segura de investimento. Muitas pessoas destinam suas disponibilidades financeiras à aquisição de casas, lojas ou escritórios, visando contar na velhice com os rendimentos do aluguel para a complementação da aposentadoria”[1].
Para proteger os interesses dos contratantes, em 18 de outubro de 1991, publicou-se a Lei nº 8.245/91, que substituiu a vetusta Lei nº 6.649/79, o Decreto nº 24.150/34 e outros dispositivos.
Nas palavras do saudoso mestre Sylvio Capanema de Souza, “mais de duas décadas se passaram e as transformações sociais e econômicas vividas pelo Brasil e pelo mundo, as várias crises sangradas, inclusive a atual, os avanços tecnológicos que nos assombram, a globalização, nada disso abalou os fundamentos da Lei nº 8245, que permanecem praticamente intactos, em verdadeiro milagre de longevidade legislativa, no terreno antes movediço do inquilinato urbano.”[2]
De fato, mesmo com tantas mudanças e atualizações ocorridas com a atual revolução tecnológica, a lei do inquilinato se mantem firme e com poucas alterações, demonstrando a assertividade com que foi elaborada, não obstante a necessidade de vigilância constante para que ela não deixe de atender aos anseios da sociedade.
Como qualquer negócio, a locação de imóveis pode gerar e, efetivamente, gera riscos para os envolvidos, seja pela falta de previsão contratual de alguma cláusula importante (estipulação do local físico para pagamento do aluguel, por exemplo[3]), seja pela inserção de uma parcial ou totalmente nula (cláusula que prevê que o imóvel do fiador garantirá a locação[4]).
Algumas situações são muito corriqueiras durante a locação, tais como, infiltrações, problemas na rede elétrica, infestação de pragas, danos causados por caso fortuito ou de força maior, desgaste natural do imóvel e uma infinidade de acontecimentos.
Em ocorrendo danos, em razão de caso fortuito ou de força maior, cabe verificar se houve alguma ação ou omissão que possa ter contribuído para o agravamento ou maior extensão dos danos, podendo surgir alguma responsabilidade específica.
A Lei do Inquilinato não prevê (e nem teria como) todas as hipóteses de possíveis danos e atribuição de responsabilidades, eis que as possibilidades são inúmeras. Sendo assim o legislador infraconstitucional elencou em rol meramente exemplificativo, algumas proposições em que dá um norte a ser seguido pelas partes, porém, grande parte dos conflitos oriundos de desacordo sobre o tema acabam nas mãos do Judiciário, pela não obtenção de consenso entre os litigantes.
A questão que se mostra relevante é, em havendo no contrato de locação cláusula fazendo referência expressa ao art. 421-A, II, da Lei nº 10.406/02 (cláusula de alocação de riscos), se poderia atribuir ao locatário a responsabilidade por danos oriundos de caso fortuito ou de força maior?
2. Desenvolvimento
A Lei nº 13.874/19 (Lei da liberdade econômica), dentre outras modificações, acrescentou o art. 421-A ao Código Civil brasileiro. Especificamente o inciso II institui a chamada “cláusula de alocação de riscos”, que deve ser respeitada e observada pelas partes contratantes e pelo judiciário.
Importante observar quais seriam os limites dessa alocação de riscos, já que a Lei de Locações, em seu artigo 45, considera nulas as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da referida lei.
Não se pode permitir que a utilização da alocação de riscos, que visa levar mais estabilidade para as contratações, auxiliando o magistrado a analisar os contratos que são submetidos ao seu crivo, seja usada de forma a violar direitos ou imputar obrigações desproporcionais a qualquer das partes.
Neste sentido, Flávio Tartuce observa que “se essa alocação de riscos gerar enriquecimento sem causa de uma parte perante outra, acarretar onerosidade excessiva, se afrontar a função social do contrato, a boa-fé objetiva ou outro preceito de ordem pública, poderá ser desconsiderada, tida como nula ou ineficaz”[5].
Sendo assim, se a cláusula de alocação de riscos tem por único objetivo desonerar o locador, transferindo responsabilidades ao locatário, sem contrapartida, poderá ser considerada abusiva e, consequentemente, nula.
Quando se fala em contratos, exsurgem alguns princípios inexoráveis como a boa-fé objetiva, probidade, função social do contrato, a liberdade contratual, intervenção mínima, excepcionalidade da revisão contratual, dentre outros que, se aplicam aos contratos em geral e, por óbvio, aos de locação.
A pedra fundamental dessa avença chama-se boa-fé. É a partir dela que se pavimenta uma contratação justa e quiçá, perfeita, não obstante os defeitos que o negócio jurídico possa apresentar.
Essa incidência é percebida no entendimento dos Tribunais Superiores, como se observa nas palavras do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Relator do Recurso Especial nº 1.898.122/MG, ao afirmar que “[…] nos contratos bilaterais as partes devem se comportar conforme os parâmetros da boa-fé objetiva, tanto na fase pré-contratual, durante a celebração do negócio jurídico e na sua execução.”
Lógico que toda contratação possui uma álea de risco e se alguma das partes (ou o intermediador do negócio) as conhece, a boa-fé lhe inflige que coloque a outra a par e mais, que não tente ocultar ou obrigar à contratação, nem utilize a avença como forma de prejudicar outrem, sob pena de ver o negócio anulado. Tanto é assim que o Código Civil elenca as possibilidades em que um contrato poderá ser anulado, quando presente um dos defeitos do negócio jurídico (erro ou ignorância, dolo, coação, estado de perigo, lesão e a fraude contra credores).
Existem casos em que há interesse de um contratante em suportar determinado encargo, que não seria seu, para obter algum benefício lícito, como abatimento no preço, aumento de prazo, etc.
O que vem à baila é a possibilidade de alguns riscos oriundos de caso fortuito ou de força maior (que em princípio seriam de responsabilidade do locador, nos termos do art. 393 do Código Civil) passarem a integrar a esfera de risco do locatário, por força de disposição contratual ou se essa disposição confrontaria o art. 45 da Lei de Locações.
Pela leitura do dispositivo em comento, seria fácil afirmar que, se o locatário assume esse encargo, não haveria o que discutir caso o fato imprevisível ocorresse, sendo fruto da liberdade contratual, insculpida no art. 421 do Código Civil brasileiro.
Entretanto, a leitura do art. 45 da Lei do Inquilinato pode tornar esse entendimento não tão óbvio.
Sylvio Capanema de Souza, fazendo menção ao indigitado artigo, em que discorre sobre cláusulas que, usando de expedientes maliciosos, tendem a colocar o locatário em manifesta desvantagem, aponta que “ao leigo pode parecer que a concordância do locatário, traduzida por sua assinatura voluntária no contrato, validaria tais cláusulas, tornando-as obrigatórias, sob a invocação do princípio do pacta sunt servanda.[6] Arremata ainda, dizendo que as possibilidades apontadas no dispositivo em comento são meramente enunciativas, figurando como exemplos, que não esgotam outras possibilidades de nulidades.
A mens legis da Lei nº 8.245/91 é também uma maior proteção ao inquilino, porém, sem ofertar garantias tais que desestimulem a oferta de imóveis no mercado, ao contrário, dando também maior proteção aos senhorios, mas sempre visando impedir o abuso do direito, sem deixar de privilegiar a liberdade dos contratantes de decidir o que melhor lhes aprouver, sem que se distanciem dos balizadores legais.
Desta feita, entende-se que o art. 45 da Lei de Locações não é um salvo-conduto para o locatário assinar qualquer contrato, na certeza de que qualquer cláusula que o onere será considerada inválida. O abuso deve ser contido, mas de ambas as partes.
3. Conclusão
É indiscutível que a Lei nº 8.245/91 se mostra como um grande avanço jurídico e que teve um impacto extremamente positivo no mercado imobiliário, este que representa uma das molas propulsoras da economia nacional, ainda que abalado por períodos de colapso, como da Pandemia de COVID-19, em que demonstrou seu poder de recuperação.
Entretanto, como qualquer outra lei, ela não consegue regular todas as inovações que podem surgir, em virtude da constante evolução da sociedade, principalmente em tempos de revolução tecnológica.
Também não se furta a eventuais lacunas que possam existir, prevendo em seu próprio corpo a aplicação subsidiária do Código Civil e de Processo Civil.
Para o escopo da locação de imóveis, tomando emprestada a inclusão do art. 421-A, II no Código Civil, tem-se a alocação de riscos como elemento auxiliar na interpretação dos contratos, bem como na distribuição dos ônus entre os contratantes, devendo ser observada, sem permitir-se, por óbvio, que se constitua em abusos.
Assim, apesar de o contrato de locação ser, na sua essência, bilateral, pois gera obrigações recíprocas, pode conter mais encargos a uma parte, que a outra, pois o equilíbrio perfeito é uma utopia contratual, já que as relações humanas tendem ao desequilíbrio, cabendo a lei buscar a isonomia ao impor limitações a uns e prerrogativas a outros, como o faz a Lei nº 8.245/91.
Não obstante, em se tratando de assunção de responsabilidade por danos oriundos de caso fortuito ou de força maior, se deve levar em conta os aspectos colacionados, mas também se necessita de uma análise pormenorizada, já que os efeitos desses eventos podem ocasionar desde simples avarias ao imóvel, até a sua total destruição.
Neste ponto, três vias podem ser desnudadas.
Ocorrendo a destruição total do imóvel, sem que o locatário tenha contribuído para o agravamento ou aumento da extensão dos danos (pois nesta hipótese algum resíduo de responsabilidade poderia ocorrer), atribuir-lhe a carga pela reconstrução do imóvel mostra-se abusivo e desproporcional, com evidente violação aos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, bem como à substância do art. 45 da Lei do Inquilinato, não sendo possível a validação de cláusula nesse sentido.
Em caso de destruição parcial, se o locatário assumiu o encargo com limites determinados (reparos de danos que afetem até 10, 20, 30% do imóvel, por exemplo), tal pacto deve ser observado, ainda que não se notem concessões ou vantagens outorgadas pelo locador, eis que ciente dos limites de sua responsabilidade. Se tal assunção se deu em função de alguma contraprestação do locador (abatimento de preço, não reajuste, isenção de multas, etc), com clara homenagem ao princípio do equilíbrio contratual, legitimada também estará a cláusula de alocação de riscos.
Em caso de danos que não importem a destruição total ou parcial, mas somente a deterioração de partes do imóvel (vidraças quebradas, telhas arrancadas, portão destruído por acidente automobilístico, fiação cortada por linha de pipa, por exemplo), discussão não há sobre sua validade, pois ancora-se na disposição do art. 393 do Código Civil de 2002, bem como no entendimento esposado pelo Superior Tribunal de Justiça, por meio da Súmula 335, que aceita a renúncia de indenização ou direito de retenção por benfeitorias realizadas pelo locatário, ainda que não haja concessões realizadas por parte do senhorio.
[1] COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil: contratos. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 109.
[2] SOUZA, Sylvio Capanema de. A Lei do Inquilinato comentada artigo por artigo. Rio de Janeiro: Forense, 2017, Introdução da edição atualizada.
[3] Lembre-se que, na ausência de avença sobre o local para pagamento do débito/aluguel, o devedor/locatário poderá exigir que seja feito no seu domicílio, conforme preconiza o art. 327 do Código Civil brasileiro, reforçado pelo art. 23, I da Lei nº 8.245/91, o que pode gerar muitos transtornos para o credor/locador ou para o administrador da locação.
[4] A fiança é uma garantia pessoal, em que o fiador garante o pagamento da dívida com todo seu patrimônio, inclusive imóvel, porém, quando se indica que o imóvel é a garantia da locação, a modalidade é a caução em bem imóvel, portanto, quando a cláusula afirma que o fiador é “fulano” e que este garante a locação com o imóvel tal, tem-se na mesma cláusula a fiança e a caução em bem imóvel, representando violação ao art. 37, parágrafo único da Lei nº 8.245/91, que veda a dupla garantia.
[5] TARTUCE, Flávio. Manual de direito civil: volume único. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2020. p 905.